Lúdicos
“É com base no brincar que se constrói a totalidade da existência
experimental do homem”
D. W. Winnicott in O Brincar e a Realidade
Luiz Chrysostomo de Oliveira Filho
Rio de Janeiro, agosto de 2022
Em 70 anos de pintura, o artista Paiva Brasil nunca deixou de surpreender,
seja pela delicadeza de suas formas, seja por suas inusitadas combinações
e justaposições de cores. Originário de nossa primeira geração construtiva
no Brasil, aluno de Samson Flexor e Santa Rosa, frequentador dos cursos de
pintura do Museu Arte Moderna do Rio de Janeiro e de desenho do Liceu de
Artes e Ofícios, na década de 1950, Paiva construiu um léxico próprio,
independente, sem se filiar a grupos ou instituições. Elaborou uma obra
ímpar onde, além da ressignificação das palavras e dos números, em
especial sua “Homage” ao algarismo cinco, produziu objetos interativos e
articulados como seus “Vertebrados”. Ao espectador sempre reservou o
direito da escolha, a opção de manipular, ora no exercício do olhar, ora na
ação tátil. Permitiu que sua criação fluísse junto ao desejo de quem observa
e contempla.
Na presente exposição suas Tangentes – reveladas a partir de 2014, e
posteriormente exibidas na grande retrospectiva no Paço Imperial de 2019 –
nos levam mais uma vez ao mundo do divertimento e das múltiplas
possibilidades do fazer. Entre encaixes, montagens, semicírculos, planos
justapostos, espaços vazados e experimentos de cor, sua artesania exalta
não apenas o belo, mas um “alfabeto concreto”, livre de preceitos, aberto ao
novo. Nas paredes as obras não precisam de uma ordem definida, cabendo
ao observador decidir, quase como um gesto, o deslocamento necessário.
Seu construtivismo lúdico permite que o manejo desses “objetos de cor” se
alinhem com a perspectiva de jogo. O Jocus do prazer, do entretenimento,
do sutil, com a delicadeza do compartilhar, sem alusão a um pódio que exija
a vitória ou o êxito. Sua proposta sempre foi agregar, brincar, e menos
competir.
paiva brasil: lúdicos galeria patricia costa
Na obra clássica “Homo Ludens” [1] de 1938, Johan Huizinga, o grande
historiador holandês, ressalta a natureza e o significado do jogo como
fenômeno cultural, algo que transcende o conceito de civilização. Para ele o
jogo além de estar relacionado às formas lúdicas da arte, está repleto de ritmo
e harmonia, algo que considera como dons de percepção estética. Em
Huizinga os laços que unem o jogo e a beleza são inequívocos e íntimos, pois
para ele as palavras utilizadas para o jogo são as mesmas que descrevemos
como os efeitos da beleza.
Já para o poeta e filósofo Friedrich Schiller, em suas Cartas Sobre a Educação
Estética do Homem, é através da atividade lúdica, do jogo, que o ser humano
alcança a liberdade, desenvolve sua criatividade, sociabilidade e sensibilidade.
É no impulso lúdico, que se estruturam os impulsos sensível e formal. A
maximização da razão, ao lado da emoção, necessita da mediação do
elemento lúdico como forma de transformação da vida. Cabe ao artista, e a
arte produzida por este, segundo ele, a tarefa de reverter o destino da
humanidade na direção de um progresso que pode ser reducionista e limitador.
Somente o artista do belo é capaz, ainda que extraindo matéria do presente, de
se apropriar de “um tempo mais nobre, e mesmo para além de todos os
tempos, da unidade absoluta de seu ser”.
Nos últimos três anos, Paiva produziu isolado em seu ateliê. Em decorrência da
crise sanitária limitou sua ação aos materiais e objetos que dispunha, sem que
isso representasse uma intimidação ou restrição ao seu espírito criativo.
Combateu o desalento que nos cercava com obra potente e convidativa ao
prazer. Pintou e produziu com alegria, novamente brincou e jogou com os
elementos que sempre dominou. Não queria explicar, mas realizar o que lhe era
inescapável: a arte e uma existência plena de beleza.
Esta última série de Tangentes nos aponta para uma infinidade de questões.
Talvez, quem sabe, aquilo que o romântico alemão Schiller almejasse como
uma educação estética. Paiva não pintou o óbvio. Produziu para que
pudéssemos refletir, provocando nossos sentidos e sensações.
Fica aqui mais uma vez a admiração e o elogio a um homem que soube
explorar e brincar talentosamente com as formas, mas que nunca esqueceu
que a essência de tudo é a humanidade e a alegria de viver.
——
[1] Em 2005 Paiva Brasil participou de uma grande coletiva no Itaú Cultural – SP denominada
Homo Ludens-Do Faz-de-Conta a Vertigem ao lado de vários artistas de sua geração.
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